Vidas Secas é uma enchente. O livro de Graciliano, publicado na íntegra em 1939, foi objeto de um trabalho que elaborei recentemente para um tópico de História e Literatura. Analisar o livro no seu contexto, o contexto do texto, essas coisas que deixam a gente profundamente angustiados é temperado de modo muito particular quando se trata das obras do velho Graça. Desta feita, compartilho, muito tardiamente é verdade, um pouco do esforço que fiz para encontrar saídas deste imbróglio. Bom, são apenas hipóteses de leitura da história de Fabiano, Sinhá Vitória, os meninos e a cachorra Baleia.
Trecho de Vidas Secas: um sertão de questões férteis. Reflexões sobre
História e Literatura. p.6-13.
Analisando
a estrutura do livro temos um conjunto de treze capítulos. Com exceção do
primeiro e do último, os outros onze podem ser lidos sem ser na seqüência
original, uma vez que se trata de capítulos “desmontáveis, segundo expressão de
Rubem Braba”.[1] O
primeiro e o último se mantêm, para dar o efeito de circularidade o qual possui
o livro, já que em Mudança é o
momento de partida dos retirantes da seca e Fugas
narra o momento em que a família retorna as estradas, fugindo novamente.
Como observou Cândido, “Vidas secas começa por uma fuga e acaba com outra”.[2]
Entretanto, analisando o livro, podemos
destacar a importância de um curioso detalhe na sua organização. Dentre os
treze capítulos, Inverno é o de
número sete. Ou seja, divide o livro em dois blocos de seis, separando Mudança, Fabiano, Cadeia, Sinhá Vitória, O
menino mais novo e o menino mais velho de um lado, enquanto Festa, Baleia, Contas, O soldado Amarelo, O
mundo coberta de penas e Fugas ficam
de outro. Em seu livro Infância (1945), Graciliano vai fazer
referência ao inverno, como aquela estação que lhe marca profundamente, uma vez
que há a presença da água: “Mergulhei numa comprida manhã de inverno. Açude
apojado, a roça verde, amarela e vermelha, os caminhos estreitos mudados em
riachos, ficaram-me na alma”.[3]
Em Vidas
Secas o narrador nos apresenta neste capítulo, Inverno, um Fabiano mais animado. “Fabiano estava de bom humor”[4],
“Fabiano
estava contente e esfregava as mãos”.[5] E
há razão para o narrador apresentar um personagem que, diante da estação que
representa a presença das chuvas, dos alimentos, da não-escassez, apareça com
bom humor, já que não terá de se preocupar com “o terror máximo dos rudes patrícios”[6],
ou seja, a seca. É um dos poucos momentos do livro em que o advérbio de
quantidade “muito” aparece, pelo menos nesse sentido: “Tudo
muito bem. E Fabiano esfregava as mãos. Não havia perigo da seca imediata, que
aterrorizava a família durante meses”.[7]
Seria
exagero apontar uma relação direta das memórias do autor com o
personagem-narrador ou Fabiano? No mínimo, uma análise ingênua. Apesar disso, é
possível pensar o inverno, tanto o capítulo, como a estação, como um elemento
importante para aqueles indivíduos que tem suas vidas divididas, além das
condições sociais, também pelas condições da natureza. Afinal, os meses de
chuva, representavam além da mudança da paisagem, a produção de alimentos, o
engorde dos animais e a atenuação da fome:
As vacas vinham abrigar-se junto à parede
da casa [...]. Iriam engordar com o pasto novo, dar crias. O pasto cresceria no
campo, as árvores enfeitariam, o gado se multiplicaria. Engordariam todos, ele
Fabiano, a mulher, os dois filhos e a cachorra baleia.[8]
É tentador a relação entre autor e personagem,
levando em consideração que Graciliano vivenciou momentos, tanto na seca que em
“1899 devastou a fazenda e a criação de gado da família Ramos” [9],
como no inverno, conforme vimos no trecho de seu livro de memórias. Ainda
assim, é preferível compreender que este capítulo dá conta de nos mostrar a
importância dessa estação para o nordestino - esta divide a vida daquelas
pessoas, assim como faz no livro entre os 12 capítulos. Ainda que “a experiência pessoal do artista não se
separe da sua produção literária”, é importante entender que o autor está
criando mecanismos para expor algumas questões, que a princípio, podemos
identificar e aprofundá-las, como é o caso da opressão, neste caso, natural,
que condenam inclusive os homens letrados, importantes, como seu Tomás da
Bolandeira: “Pois viera a seca, e o pobre do velho, tão bom e tão lido,
perdera tudo”.[10]
Mesmo seu Tomás: que “era pessoa de
consideração e votava”.[11]
Além disso, observamos que os
capítulos, ainda que desmontáveis, possuem uma ligação interna, já que possuem
mais sentido, lidos em conjunto. São “autônomos, mas completos, de narrativa
cheia e contínua, baseada num discurso que nada tem de fragmentário”.[12]
Elementos principais como a paisagem, os sentimentos de opressão, as angústias,
são compartilhadas ao longo do livro, ao delinear a história. São capítulos
desmontáveis como a vida dos retirantes, que a cada chegada renascem novamente,
a exemplo de Sinhá Vitória que “esquecera a vida antiga, era como se
tivesse nascido depois que chegara à fazenda”.[13]
Além
da opressão natural, a opressão social é outro elemento importante. Em vários
trechos podemos identificar como as relações de poder se operam naquele cenário
- o sertão nordestino dos vaqueiros como Fabiano e de mulheres como Sinhá
Vitória, indivíduos que buscam alternativas para sobreviver com a família,
mesmo sem destino: “O vaqueiro precisava chegar, não sabia onde”.[14]
Os personagens secundários, o patrão, o soldado amarelo, os chefes do soldado
amarelo, desempenham importante função na obra, pois compõem as situações em
que aparece a opressão, oprimem exercendo o mando, recorrendo à agressão física.
A agressão aparece em várias escalas: do soldado amarelo para Fabiano, de
Fabiano para o filho mais novo, do filho mais velho para cachorra Baleia, sendo
que o narrador reconhece a injustiça em diversos momentos, como se dá neste
caso: “Às
vezes recebia pontapés sem motivo”[15].
Conforme lembra Cândido, “os
castigos imerecidos, as maldades sem motivo, de que são vítimas os fracos,
estão à base da organização do mundo”[16].
Logo, “fica patente a marca da opressão do mais forte sobre o mais fraco,
transmitindo de geração a geração essa herança perversa”.[17]
O soldado
amarelo, por exemplo, prende sem motivo Fabiano, pisa nos pés de gente como o
vaqueiro e mesmo não tendo porte físico para impor respeito, é autoridade:
“governo é governo”.[18]
E
como bem observou Ana Amélia Melo, “a figura do soldado amarelo
seria a alegórica menção da forma como o Estado se fazia presente nas regiões
do sertão, e especialmente para as pessoas como Fabiano”.[19]
Os comerciantes locais lhe extorquem, o patrão sempre lhe rouba no pagamento,
cobrando juros e dá ordens apenas para garantir seu lugar na hierarquia: “e o
amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono” [20],
“como andariam as contas com o patrão? Estava ali o que ele não conseguiria
nunca decifrar. Aquele negócio de juros engolia tudo”[21],
“todos lhe davam prejuízo. Os caixeiros, os comerciantes e o proprietário
tiravam-lhe o couro, e os que não tinham negócio com ele riam vendo-o passar
nas ruas, tropeçando”[22],
“Pouco a pouco o ferro do proprietário queimava os bichos de Fabiano. E quando
não tinha mais nada para vender, o sertanejo endivida-se”.[23]
Espoliado
como a maioria dos trabalhadores rurais, Fabiano é mais um dos sertanejos que
não tendo propriedade, vê sua força de trabalho enriquecendo outrem. “Passar a
vida inteira no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito
aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria?”.[24] E
só lhe restava exclamar a si mesmo sua indignação:
[...] tirou do bolso o dinheiro,
examinou-o, procurando adivinhar quanto lhe tinham furtado. Não podia dizer em
voz alta que aquilo era um furto:
–
Ladroeira. [25]
O
personagem tinha noção de que estava sendo explorado, mas ponderava: “Sabia
perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas injustiças”.[26] Naquele momento reconhecia que a única forma
de enfrentar o poder autoritário, o mandonismo dos coronéis, os patrões que lhe
roubavam era recorrer a violência: “Se a seca chegasse, ele abandonaria mulher
e filhos, coseria a facadas o soldado amarelo, depois mataria o juiz, o
promotor e o delegado”.[27]
Ainda assim, o personagem se mantém frio e pensando na família, abdica da
violência e compreende que para sobreviver naquelas circunstâncias precisava
jogar as regras daquele jogo injusto – “Se não fosse isso, um soldado amarelo
não lhe pisava um pé não. O que lhe amolecia o corpo era a lembrança da mulher
e dos filhos”.[28]
O
narrador também nos apresenta importantes dados sobre as condições da infância
naquele espaço do sertão e o que era ser criança naquele momento. Os meninos, anônimos,
sem nomes, carregam o fardo desde cedo da secura, condenados pelo sol,
acompanham as longas viagens dos pais. E na lógica do livro, o futuro deles é
traçado em dois sentidos: o de se educar, “aprendendo coisas difíceis e
necessárias”[29],
ou continuar, a exemplo do pai, sendo “pau para toda obra” em diferentes
fazendas, para diferentes patrões, apanhando de soldados amarelos. De um lado,
a figura materna preocupada com os filhos, desejando algo melhor que as condições
de trabalho impostas no sertão:
Agora desejava saber que iriam fazer os
filhos quando crescessem.
- Vaquejar, opinou Fabiano.
Sinhá Vitória, com uma careta enjoada, balançou a cabeça negativamente, arriscando-se a derrubar o baú de folha. Nossa Senhora os livrasse de semelhante desgraça. Vaquejar, que idéia![30]
- Vaquejar, opinou Fabiano.
Sinhá Vitória, com uma careta enjoada, balançou a cabeça negativamente, arriscando-se a derrubar o baú de folha. Nossa Senhora os livrasse de semelhante desgraça. Vaquejar, que idéia![30]
De
outro lado, o narrador compara-os com o pai: “os meninos eram uns brutos, como
o pai. Quando crescessem, guardariam as reses de um patrão invisível, seriam
pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo”. [31] E o pai, em alguns momentos, acreditava que o
único caminho das crianças seria mesmo um destino igual o seu, afinal, Fabiano
“Tinha vindo ao mundo amansar brabo, curar feridas com rezas, consertar cercas
de inverno a verão. Era sina. O pai vivera assim, o avô também”.[32]
Outro
item que nos dá condições de discutir os valores da obra, é a importante função
da linguagem em Vidas Secas. Percebemos
que ter o poder da linguagem, do saber, naquele contexto, era condição quase
necessária, inclusive para sobreviver: “Sinhá Vitória precisava falar. Se
ficasse calada, seria como um pé de mandacaru, secando, morrendo”.[33]
Em outra passagem, o narrador nos coloca outra situação igualmente significante
na relação entre não-saber e morte: “Na beira do rio haviam comido o papagaio,
que não sabia falar. Necessidade. Fabiano também não sabia falar”.[34] Nos
dois casos, como podemos ver, a linguagem exerce função vital, já que quando
não sabiam as palavras difíceis da cidade, eram condenados, conforme nos
apresenta o narrador, as mais diversas privações pelas quais passam os
personagens, Fabiano, por exemplo: “Sempre que os homens sabidos lhe diziam
palavras difíceis, ele saía logrado”[35]. Conforme
bem observou Arturo Gouveia: “Fabiano
sofre acusações e agressões físicas e não se defende. Seu comportamento
lingüístico é monossilábico. Restringe-se a rosnações sem efeito transformador
ou ao menos de protesto dentro do sistema”[36]
e também que:
A
impotência verbal de Fabiano, semantizada em comparação à cultura de seu Tomás
e a praticidade do soldado amarelo, põe em cena a relação entre poder e saber,
linguagem e memória histórica, em homologia com a tendência secular do
capitalismo de destruir alternativas de poder, monopolizando tudo, inclusive o
poder verbal.[37]
Logo,
podemos compreender os limites impostos socialmente para as pessoas que não
detém o poder da palavra. São condenadas, assim como Fabiano, as prisões do
não-saber, principalmente, numa sociedade que como podemos ver hoje, tornou-se
extremamente grafocêntrica, ou seja, centrada nos signos da escrita.
Além
da linguagem dos personagens, podemos fazer uma breve reflexão sobre a forma
como Graciliano também se utilizou de recursos literários, para trabalhar essa
questão. No livro, temos um narrador que possui a palavra, logo, explica a
história e elucida a vida daquelas pessoas. Ao contrário, os personagens,
comunicam-se por grunhidos, gesticulações e muitas vezes, frustram-se na falta
da palavra, do saber dizer. Conforme Cândido, Graciliano encontrou uma forma de
causar “efeito máximo
por meio dos recursos mínimos”.
[2] Idem. Ibdem, p.55.
[3] RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1978,
p.20.
[4] Idem. Vidas Secas. Rio
de Janeiro: Record. 1986, p.65.
[5] Idem. Ibdem. p.67.
[6] CUNHA, Euclides. Os sertões. Rio de Janeiro: Edições de
Ouro, 1969, p.49.
[7] RAMOS, Graciliano. Op. Cit. 1986, p.65.
[8] RAMOS, Graciliano. Op. Cit. 1986, p.67
[9] DANNEL, Mário Fernando Passos. Graciliano Ramos e a crônica:
uma vida em três séries. In: CHALHOUB, Sidney et al (orgs). História em cousas miúdas: capítulos da
história social da crônica no Brasil. Campinas, São Paulo: Editora da
Unicamp, 2005. p.265.
[10] RAMOS, Graciliano. Op. Cit. 1986, p.22.
[11] Idem. Ibdem, p.27.
[12] CANDIDO. Antonio. 50
anos de Vidas Secas. IN: Ficção e
Confissão. 3 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p.151.
[13] RAMOS, Graciliano. Op. Cit. 1986, p. 43.
[14] Idem. Ibdem, p.10.
[15] Idem. Ibdem, p.55.
[16] CÂNDIDO, Antônio Op. Cit. 1956, p.63.
[17] AZEVEDO, Neroaldo
Pontes de. Op. Cit. 1992, p.17.
[18] RAMOS, Graciliano. Op. Cit. 1986, p.107.
[19] MELO, Ana Amélia M. C.
Op. Cit. 2005, p. 382.
[20] RAMOS, Graciliano. Op. Cit. 1986, p. 23.
[21] Idem. Ibdem. p.110.
[22] Idem. Ibdem. p.76.
[23] Idem. Ibdem. p.92.
[24] Idem. Ibdem. p.93.
[25] Idem. Ibdem. p.94
[26] Idem. Ibdem. p.33.
[28] Idem. Ibdem. p. 37.
[29] Idem. Ibdem. p.126.
[30] Idem. Ibdem. p.122.
[31] Idem. Ibdem. p.38.
[33] Idem. Ibdem. p.119.
[34] Idem. Ibdem. p. 36.
[35] Idem. Ibdem. p.96.
[36] GOUVEIA, Arturo. Literatura em cadeia. In: AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. (org.).
100 anos Graciliano Ramos. João Pessoa; CCHLA/idéia. 1992, p.134.
[37] Idem. Ibdem, p.136.
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