sexta-feira, 13 de julho de 2012

Para muitos, o inverno é o céu.


 

Vidas Secas é uma enchente.  O livro de Graciliano, publicado na íntegra em 1939, foi objeto de um trabalho que elaborei recentemente para um tópico de História e Literatura. Analisar o livro no seu contexto, o contexto do texto, essas coisas que deixam a gente profundamente angustiados é temperado de modo muito particular quando se trata das obras do velho Graça. Desta feita, compartilho, muito tardiamente é verdade, um pouco do esforço que fiz para encontrar saídas deste imbróglio. Bom, são apenas hipóteses de leitura da história de Fabiano, Sinhá Vitória, os meninos e a cachorra Baleia.







Trecho de Vidas Secas: um sertão de questões férteis. Reflexões sobre História e Literatura. p.6-13.

Analisando a estrutura do livro temos um conjunto de treze capítulos. Com exceção do primeiro e do último, os outros onze podem ser lidos sem ser na seqüência original, uma vez que se trata de capítulos “desmontáveis, segundo expressão de Rubem Braba”.[1] O primeiro e o último se mantêm, para dar o efeito de circularidade o qual possui o livro, já que em Mudança é o momento de partida dos retirantes da seca e Fugas narra o momento em que a família retorna as estradas, fugindo novamente. Como observou Cândido, “Vidas secas começa por uma fuga e acaba com outra”.[2]
 Entretanto, analisando o livro, podemos destacar a importância de um curioso detalhe na sua organização. Dentre os treze capítulos, Inverno é o de número sete. Ou seja, divide o livro em dois blocos de seis, separando Mudança, Fabiano, Cadeia, Sinhá Vitória, O menino mais novo e o menino mais velho de um lado, enquanto Festa, Baleia, Contas, O soldado Amarelo, O mundo coberta de penas e Fugas ficam de outro. Em seu livro Infância (1945), Graciliano vai fazer referência ao inverno, como aquela estação que lhe marca profundamente, uma vez que há a presença da água: “Mergulhei numa comprida manhã de inverno. Açude apojado, a roça verde, amarela e vermelha, os caminhos estreitos mudados em riachos, ficaram-me na alma”.[3]
Em Vidas Secas o narrador nos apresenta neste capítulo, Inverno, um Fabiano mais animado. “Fabiano estava de bom humor”[4], “Fabiano estava contente e esfregava as mãos”.[5] E há razão para o narrador apresentar um personagem que, diante da estação que representa a presença das chuvas, dos alimentos, da não-escassez, apareça com bom humor, já que não terá de se preocupar com “o terror máximo dos rudes patrícios”[6], ou seja, a seca. É um dos poucos momentos do livro em que o advérbio de quantidade “muito” aparece, pelo menos nesse sentido: “Tudo muito bem. E Fabiano esfregava as mãos. Não havia perigo da seca imediata, que aterrorizava a família durante meses”.[7]
Seria exagero apontar uma relação direta das memórias do autor com o personagem-narrador ou Fabiano? No mínimo, uma análise ingênua. Apesar disso, é possível pensar o inverno, tanto o capítulo, como a estação, como um elemento importante para aqueles indivíduos que tem suas vidas divididas, além das condições sociais, também pelas condições da natureza. Afinal, os meses de chuva, representavam além da mudança da paisagem, a produção de alimentos, o engorde dos animais e a atenuação da fome:

As vacas vinham abrigar-se junto à parede da casa [...]. Iriam engordar com o pasto novo, dar crias. O pasto cresceria no campo, as árvores enfeitariam, o gado se multiplicaria. Engordariam todos, ele Fabiano, a mulher, os dois filhos e a cachorra baleia.[8]

 
 É tentador a relação entre autor e personagem, levando em consideração que Graciliano vivenciou momentos, tanto na seca que em “1899 devastou a fazenda e a criação de gado da família Ramos” [9], como no inverno, conforme vimos no trecho de seu livro de memórias. Ainda assim, é preferível compreender que este capítulo dá conta de nos mostrar a importância dessa estação para o nordestino - esta divide a vida daquelas pessoas, assim como faz no livro entre os 12 capítulos. Ainda que “a experiência pessoal do artista não se separe da sua produção literária”, é importante entender que o autor está criando mecanismos para expor algumas questões, que a princípio, podemos identificar e aprofundá-las, como é o caso da opressão, neste caso, natural, que condenam inclusive os homens letrados, importantes, como seu Tomás da Bolandeira: “Pois viera a seca, e o pobre do velho, tão bom e tão lido, perdera tudo”.[10] Mesmo seu Tomás:  que “era pessoa de consideração e votava”.[11]
Além disso, observamos que os capítulos, ainda que desmontáveis, possuem uma ligação interna, já que possuem mais sentido, lidos em conjunto. São “autônomos, mas completos, de narrativa cheia e contínua, baseada num discurso que nada tem de fragmentário”.[12] Elementos principais como a paisagem, os sentimentos de opressão, as angústias, são compartilhadas ao longo do livro, ao delinear a história. São capítulos desmontáveis como a vida dos retirantes, que a cada chegada renascem novamente, a exemplo de Sinhá Vitória que “esquecera a vida antiga, era como se tivesse nascido depois que chegara à fazenda”.[13]
Além da opressão natural, a opressão social é outro elemento importante. Em vários trechos podemos identificar como as relações de poder se operam naquele cenário - o sertão nordestino dos vaqueiros como Fabiano e de mulheres como Sinhá Vitória, indivíduos que buscam alternativas para sobreviver com a família, mesmo sem destino:O vaqueiro precisava chegar, não sabia onde”.[14] Os personagens secundários, o patrão, o soldado amarelo, os chefes do soldado amarelo, desempenham importante função na obra, pois compõem as situações em que aparece a opressão, oprimem exercendo o mando, recorrendo à agressão física. A agressão aparece em várias escalas: do soldado amarelo para Fabiano, de Fabiano para o filho mais novo, do filho mais velho para cachorra Baleia, sendo que o narrador reconhece a injustiça em diversos momentos, como se dá neste caso: “Às vezes recebia pontapés sem motivo”[15]. Conforme lembra Cândido, “os castigos imerecidos, as maldades sem motivo, de que são vítimas os fracos, estão à base da organização do mundo”[16]. Logo, “fica patente a marca da opressão do mais forte sobre o mais fraco, transmitindo de geração a geração essa herança perversa”.[17]
O soldado amarelo, por exemplo, prende sem motivo Fabiano, pisa nos pés de gente como o vaqueiro e mesmo não tendo porte físico para impor respeito, é autoridade: “governo é governo”.[18] E como bem observou Ana Amélia Melo, “a figura do soldado amarelo seria a alegórica menção da forma como o Estado se fazia presente nas regiões do sertão, e especialmente para as pessoas como Fabiano”.[19] Os comerciantes locais lhe extorquem, o patrão sempre lhe rouba no pagamento, cobrando juros e dá ordens apenas para garantir seu lugar na hierarquia: “e o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono” [20], “como andariam as contas com o patrão? Estava ali o que ele não conseguiria nunca decifrar. Aquele negócio de juros engolia tudo”[21], “todos lhe davam prejuízo. Os caixeiros, os comerciantes e o proprietário tiravam-lhe o couro, e os que não tinham negócio com ele riam vendo-o passar nas ruas, tropeçando”[22], “Pouco a pouco o ferro do proprietário queimava os bichos de Fabiano. E quando não tinha mais nada para vender, o sertanejo endivida-se”.[23]
Espoliado como a maioria dos trabalhadores rurais, Fabiano é mais um dos sertanejos que não tendo propriedade, vê sua força de trabalho enriquecendo outrem. “Passar a vida inteira no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria?”.[24] E só lhe restava exclamar a si mesmo sua indignação:

[...] tirou do bolso o dinheiro, examinou-o, procurando adivinhar quanto lhe tinham furtado. Não podia dizer em voz alta que aquilo era um furto:
– Ladroeira. [25]

O personagem tinha noção de que estava sendo explorado, mas ponderava: “Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas injustiças”.[26]  Naquele momento reconhecia que a única forma de enfrentar o poder autoritário, o mandonismo dos coronéis, os patrões que lhe roubavam era recorrer a violência: “Se a seca chegasse, ele abandonaria mulher e filhos, coseria a facadas o soldado amarelo, depois mataria o juiz, o promotor e o delegado”.[27] Ainda assim, o personagem se mantém frio e pensando na família, abdica da violência e compreende que para sobreviver naquelas circunstâncias precisava jogar as regras daquele jogo injusto – “Se não fosse isso, um soldado amarelo não lhe pisava um pé não. O que lhe amolecia o corpo era a lembrança da mulher e dos filhos”.[28]
         O narrador também nos apresenta importantes dados sobre as condições da infância naquele espaço do sertão e o que era ser criança naquele momento. Os meninos, anônimos, sem nomes, carregam o fardo desde cedo da secura, condenados pelo sol, acompanham as longas viagens dos pais. E na lógica do livro, o futuro deles é traçado em dois sentidos: o de se educar, “aprendendo coisas difíceis e necessárias”[29], ou continuar, a exemplo do pai, sendo “pau para toda obra” em diferentes fazendas, para diferentes patrões, apanhando de soldados amarelos. De um lado, a figura materna preocupada com os filhos, desejando algo melhor que as condições de trabalho impostas no sertão:

Agora desejava saber que iriam fazer os filhos quando crescessem. 
- Vaquejar, opinou Fabiano. 
Sinhá Vitória, com uma careta enjoada, balançou a cabeça negativamente, arriscando-se a derrubar o baú de folha. Nossa Senhora os livrasse de semelhante desgraça. Vaquejar, que idéia![30]

De outro lado, o narrador compara-os com o pai: “os meninos eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem, guardariam as reses de um patrão invisível, seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo”. [31]  E o pai, em alguns momentos, acreditava que o único caminho das crianças seria mesmo um destino igual o seu, afinal, Fabiano “Tinha vindo ao mundo amansar brabo, curar feridas com rezas, consertar cercas de inverno a verão. Era sina. O pai vivera assim, o avô também”.[32]
Outro item que nos dá condições de discutir os valores da obra, é a importante função da linguagem em Vidas Secas. Percebemos que ter o poder da linguagem, do saber, naquele contexto, era condição quase necessária, inclusive para sobreviver: “Sinhá Vitória precisava falar. Se ficasse calada, seria como um pé de mandacaru, secando, morrendo”.[33] Em outra passagem, o narrador nos coloca outra situação igualmente significante na relação entre não-saber e morte: “Na beira do rio haviam comido o papagaio, que não sabia falar. Necessidade. Fabiano também não sabia falar”.[34] Nos dois casos, como podemos ver, a linguagem exerce função vital, já que quando não sabiam as palavras difíceis da cidade, eram condenados, conforme nos apresenta o narrador, as mais diversas privações pelas quais passam os personagens, Fabiano, por exemplo: “Sempre que os homens sabidos lhe diziam palavras difíceis, ele saía logrado”[35]. Conforme bem observou Arturo Gouveia: “Fabiano sofre acusações e agressões físicas e não se defende. Seu comportamento lingüístico é monossilábico. Restringe-se a rosnações sem efeito transformador ou ao menos de protesto dentro do sistema”[36] e também que:

A impotência verbal de Fabiano, semantizada em comparação à cultura de seu Tomás e a praticidade do soldado amarelo, põe em cena a relação entre poder e saber, linguagem e memória histórica, em homologia com a tendência secular do capitalismo de destruir alternativas de poder, monopolizando tudo, inclusive o poder verbal.[37]

Logo, podemos compreender os limites impostos socialmente para as pessoas que não detém o poder da palavra. São condenadas, assim como Fabiano, as prisões do não-saber, principalmente, numa sociedade que como podemos ver hoje, tornou-se extremamente grafocêntrica, ou seja, centrada nos signos da escrita.
Além da linguagem dos personagens, podemos fazer uma breve reflexão sobre a forma como Graciliano também se utilizou de recursos literários, para trabalhar essa questão. No livro, temos um narrador que possui a palavra, logo, explica a história e elucida a vida daquelas pessoas. Ao contrário, os personagens, comunicam-se por grunhidos, gesticulações e muitas vezes, frustram-se na falta da palavra, do saber dizer. Conforme Cândido, Graciliano encontrou uma forma de causar “efeito máximo por meio dos recursos mínimos”.


 Referências Bibliográficas

[1] CÂNDIDO, Antônio Op. Cit. 1956, p.52
[2] Idem. Ibdem, p.55.
[3] RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1978, p.20.
[4] Idem. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record. 1986, p.65.
[5] Idem. Ibdem. p.67.
[6] CUNHA, Euclides. Os sertões. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1969, p.49.
[7] RAMOS, Graciliano. Op. Cit. 1986, p.65.
[8] RAMOS, Graciliano. Op. Cit. 1986, p.67
[9] DANNEL, Mário Fernando Passos. Graciliano Ramos e a crônica: uma vida em três séries. In: CHALHOUB, Sidney et al (orgs). História em cousas miúdas: capítulos da história social da crônica no Brasil. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2005. p.265.
[10] RAMOS, Graciliano. Op. Cit. 1986, p.22.
[11] Idem. Ibdem, p.27.
[12] CANDIDO. Antonio. 50 anos de Vidas Secas. IN: Ficção e Confissão. 3 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p.151.
[13] RAMOS, Graciliano. Op. Cit. 1986, p. 43.
[14] Idem. Ibdem, p.10.
[15] Idem. Ibdem, p.55.
[16] CÂNDIDO, Antônio Op. Cit. 1956, p.63.
[17] AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. Op. Cit. 1992, p.17.
[18] RAMOS, Graciliano. Op. Cit. 1986, p.107.
[19] MELO, Ana Amélia M. C. Op. Cit. 2005, p. 382.
[20] RAMOS, Graciliano. Op. Cit. 1986, p. 23.
[21] Idem. Ibdem. p.110.
[22] Idem. Ibdem. p.76.
[23] Idem. Ibdem. p.92.
[24] Idem. Ibdem. p.93.
[25] Idem. Ibdem. p.94
[26] Idem. Ibdem. p.33.
[27] Idem. Ibdem. p.67.
[28] Idem. Ibdem. p. 37.
[29] Idem. Ibdem. p.126.
[30] Idem. Ibdem. p.122.
[31] Idem. Ibdem. p.38.
[32] Idem. Ibdem. p. 96.
[33] Idem. Ibdem. p.119.
[34] Idem. Ibdem. p. 36.
[35] Idem. Ibdem. p.96.
[36] GOUVEIA, Arturo. Literatura em cadeia. In: AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. (org.).  100 anos Graciliano Ramos. João Pessoa; CCHLA/idéia. 1992, p.134.
[37] Idem. Ibdem, p.136.

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